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1 - Introdução
1 - Introdução

Visto que muitos já tentaram compor uma narração dos fatos que se cumpriram entre nós – conforme no-los transmitiram os que, desde o princípio, foram testemunhas oculares e ministros da Palavra – a mim também pareceu conveniente, após acurada investigação de tudo desde o princípio, escrever-te de modo ordenado, ilustre Teófilo, para que verifiques a solidez dos ensinamentos que recebeste” (Lc 1,1-4). Conforme as regras literárias do século I, o autor explica o motivo de sua obra, método, destinatário e objetivo.

 

A obra lucana é composta por dois livros: evangelho de Lucas e Atos dos Apóstolos. O primeiro livro apresenta a vida, as atividades e os ensinamentos de Jesus, desde a Galileia até Jerusalém. O segundo livro narra a vida e o desenvolvimento das primeiras comunidades cristãs de Jerusalém até Roma. Essa obra descreve o caminho da Palavra: da periferia para o centro; do ambiente do campo para a cidade; do mundo judaico para um ambiente de cultura grega. Segundo a compreensão romana, o reino de César anunciava que a paz e a segurança vinham dos poderosos, do centro para a periferia.

 

Como historiador, o escritor se propõe a fazer uma investigação cuidadosa, retomando os acontecimentos desde as origens. Ele recolhe informações de outras fontes, como, por exemplo, do evangelho de Marcos, do evangelho Q e da tradição das comunidades. A obra de Lucas é destinada a Teófilo, nome que pode indicar uma pessoa importante, alguém que deve ter financiado o seu trabalho. Mas o nome Teófilo também significa aquele que ama a Deus. É possível que essa obra tenha sido dedicada às amigas e aos amigos de Deus.

 

De acordo com a apresentação, o objetivo é claro: “para que verifiques a solidez dos ensinamentos que recebeste” (Lc 1,4). A finalidade dessa obra é animar as comunidades que estão enfrentando desânimo, cansaço, insegurança e descrença. Muitas pessoas estão abandonando a comunidade (Lc 24,13). É preciso reavivar a fé das comunidades cristãs e retomar o fervor missionário.

 

Para conhecer a mensagem e os possíveis destinatários do evangelho de Lucas, vamos  apresentar algumas palavras-chave desse livro.

 

Mensagem e destinatários

 

Ao apresentar a sua narrativa, o autor utiliza com frequência as seguintes palavras: cidade, pobres, multidão, oração, salvação, conversão e misericórdia.

 

a) Cidade

É usada cerca de trinta e nove vezes no evangelho de Lucas; em Mateus, vinte e seis vezes, e em Marcos, nove. A cidade é a sede da organização e o lugar dos poderosos (Lc 2,1-3; 3,1-2). A constante repetição da palavra cidade nos faz pensar que o terceiro evangelho foi escrito para pessoas e comunidades localizadas nas cidades, com a presença de ricos e pobres (Lc 19,1-2).

 

b) Pobres

Desde o início, no cântico de Maria, ouvimos: “Depôs poderosos de seus tronos, e a humildes exaltou. Cumulou de bens a famintos e despediu ricos de mãos vazias” (Lc 1,52-53). De acordo  com o evangelho de Lucas, a missão de Jesus é evangelizar os pobres: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me consagrou com a unção para evangelizar os pobres” (Lc 4,18). Os pobres são os preferidos de Deus: “Ide contar a João o que vedes e ouvis: os cegos recuperam a vista, os coxos andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e aos pobres é anunciado o Evangelho” (Lc 7,22; cf. 6,20). De maneira dura, Jesus critica a avareza dos ricos, o acúmulo e a falta de compaixão e solidariedade com os pobres (Lc 12,16-21; 16,19-31).

 

c) Multidão/multidões

É muita gente ao redor de Jesus: “as multidões se aglomeravam a ponto de sufocá-lo” (Lc 8,42; cf. 5,1.3.15; 19.29; 8,19.45; 11,29; 12,1; 14,25). Em Lucas, o discurso das bem-aventuranças foi proclamado diante de uma imensa multidão (Lc 6,17-19). A multidão testemunha os gestos de Jesus ao curar o servo de um centurião, ao ressuscitar o filho único da viúva de Naim, ao libertar as pessoas de espíritos impuros (Lc 7,9.11-12; 11,14). Por diversas vezes, Jesus se dirige à multidão (Lc 7,24; 8,4; 12,54), que sempre o acompanha (Lc 18,36; 19,3). A multidão acolhe Jesus, e ele também acolhe as multidões (Lc 8,40; 9,11.37). Jesus é solidário com a multidão faminta no deserto (Lc 9,12.16). As multidões seguem Jesus e procuram definir quem é ele (Lc 9,18-21). A multidão se alegra com as maravilhas realizadas por Jesus (Lc 13,17).

 

d) Oração

Palavra que é usada cerca de setenta vezes no evangelho de Lucas! É o evangelho que mais apresenta Jesus rezando e convida a comunidade a rezar. Só Lucas coloca Jesus rezando no batismo (Lc 3,21), após o milagre (Lc 5,16), antes da escolha dos Doze (Lc 6,12) e da confissão de Pedro (Lc 9,18), no momento da transfiguração (Lc 9,28-29) e no Getsêmani (Lc 22,46). Esse evangelho insiste na necessidade de ser perseverante na oração (Lc 11,5-8; 18,1), especialmente nos momentos de dificuldades (Lc 22,40.46). É um evangelho que reforça a necessidade de buscar a vontade de Deus e não simplesmente o cumprimento da Lei (Lc 18,2 14).

 

e) A salvação “hoje”

“Nasceu-vos hoje um Salvador, que é o Cristo-Senhor” (Lc 2,11). Em Cristo, Deus nos oferece a salvação no tempo presente: “Hoje se cumpriu aos vossos ouvidos essa passagem da Escritura” (Lc 4,21). Na casa de Zaqueu, Jesus afirma: “Hoje a salvação entrou nesta casa” (Lc 19,9). E mesmo na cruz, Jesus promete ao bom ladrão: “Em verdade, eu te digo, hoje estarás comigo no Paraíso” (Lc 23,43). É um convite para acolher Deus que em Jesus visita o seu povo. O evangelho de Lucas nos ajuda a viver o seguimento de Jesus no hoje de nossas vidas!

 

f) Conversão

Em muitas passagens, o evangelho de Lucas destaca a salvação dos pecadores, mas exige que a pessoa esteja disposta a mudar de vida: “não vim chamar os justos, mas sim os pecadores, ao arrependimento” (Lc 5,32). A salvação não está garantida unicamente pelo cumprimento das exigências da Lei, mas é um processo permanente (Lc 13,1-5; 6-9).  Deus é paciente e nos espera sempre, como podemos ler na parábola da figueira: “Senhor, deixa-a ainda este ano para que cave ao redor e coloque adubo. Depois, talvez, dê frutos... Caso contrário, tu a cortarás” (Lc 13,8-9). Sempre há mais uma chance. Converter-se exige levantar, voltar, reconhecer a sua condição e pedir perdão... é reviver: “este meu filho estava morto e tornou a viver, estava perdido e foi reencontrado” (Lc 15,24.32).

 

g) Misericórdia

O evangelho de Lucas reforça a misericórdia de Deus: “Graças ao misericordioso coração do nosso Deus, pelo qual nos visita o Astro das alturas” (Lc 1,78). Um coração que ama a partir das entranhas, amor que se manifesta no perdão e na acolhida: é como o pastor que procura a ovelha perdida e faz festa quando a encontra; ou como a mulher que procura a moeda perdida e quando a encontra reúne e celebra com suas amigas e vizinhas; é como o pai da parábola que acolhe seus filhos de maneira incondicional (Lc 15,1-32). Mesmo no momento da morte, Jesus pede a Deus que perdoe seus inimigos: “Pai, perdoa-lhes: não sabem o que fazem” (Lc 23,43).

 

O evangelho de Lucas apresenta Jesus realizando a sua missão na cidade e, preferencialmente, no meio de pessoas pobres, doentes, mulheres, estrangeiras, samaritanas e pecadoras. Gente excluída e à margem da sociedade.

 

Esse evangelho reforça a necessidade da oração perseverante e insiste na conversão permanente, pois a salvação acontece no hoje da história para as pessoas que se abrem ao projeto de Deus misericordioso.

 

Desde a pregação de Jesus nos anos 30 até os anos 80, as comunidades aguardam a chegada do Reino de Deus. E nada... Ao contrário, há muito sofrimento, dominação e exploração. A desconfiança e a dúvida se instalam na comunidade cristã, e muitas pessoas estão a prática de Jesus. Nesse contexto, o autor faz uma releitura da vida e da prática de Jesus; ele reforça o compromisso com as pessoas marginalizadas e combate o ritualismo e o legalismo, insistindo na prática da misericórdia. Conhecendo um pouco mais o projeto do evangelho de Lucas, vejamos quem é o autor desta obra.

 

Autor do evangelho de Lucas

 

Cada evangelho surgiu numa comunidade específica que conhecia quem era o seu autor  ou os seus autores. Os nomes dos autores não constavam no texto porque não era preciso.

 

Assim, circularam de forma anônima, mais ou menos, até o ano 150 d.C., quando começava-se a definir a lista dos livros considerados inspirados do  Novo Testamento. É nesse  momento que os evangelhos foram atribuídos a Marcos, Mateus, Lucas e João. O nome Lucas é citado na carta de Paulo a Filêmon (v. 24), e aparece mais duas vezes: uma em Cl 4,14 e outra em 2Tm 4,11, que são cartas escritas por discípulos de Paulo.

 

Ao compararmos Lucas e Atos com as Cartas de Paulo, encontraremos diferenças importantes que nos levam a crer que o Evangelho e os Atos não foram escritos por esse Lucas que foi companheiro de Paulo. Em Atos dos Apóstolos, Paulo é descrito como um missionário que tem poder de curar doentes, de expulsar demônios e ressuscitar mortos (At 14,3.8-10; 16,16-18.25-34; 20,4), mas não é considerado um apóstolo.

 

Nas cartas, como em 2Cor 12,5-10, o próprio Paulo se apresenta como uma pessoa frágil, sem poder algum, mas afirma ser apóstolo, chamado e enviado por Jesus, que por amor a Cristo crucificado faz-se solidário com os crucificados da história. Além disso, em Atos dos Apóstolos, Paulo é muito semelhante a Pedro, é mais inclinado a se adaptar diante das exigências dos judeus, e se apresenta como cidadão romano, o que não acontece nas cartas paulinas.

 

O autor de Lucas e Atos deve ter sido outra pessoa. Ele não era da Palestina, pois se atrapalha ao falar da geografia da região. Possivelmente um admirador de Paulo, talvez membro de uma das comunidades de origem paulina ou um prosélito grego, alguém que entrou em contato com a religião judaica, estudou a fundo as Escrituras e mais tarde aderiu ao evangelho de Jesus Cristo.No fim do século, as comunidades vivem um momento crítico em sua caminhada, correm o risco de abandonar o projeto de Jesus e assimilar os valores propostos pela sociedade greco-romana. Algumas pessoas caem na descrença e no desânimo, abandonando a caminhada (Lc 24,13.21). Diante dos desafios de seu tempo, o autor procura reavivar a memória da prática de Jesus tendo como objetivo principal “verificar a solidez dos ensinamentos recebidos” (Lc 1,4). Para isso, ele apresenta quem é Jesus de Nazaré e o que é preciso fazer para segui-lo.

 

Pisando o chão das comunidades de Lucas

 

A obra lucana teve a sua redação final por volta do ano 85. Essa obra pode ter sido escrita na cidade de Antioquia da Síria, Éfeso, ou mesmo numa cidade da Grécia. Para nós, o mais importante é saber que surgiu numa cidade grande, sob o domínio do império romano e em comunidades fundadas por Paulo, compostas por estrangeiros/as e judeus cristãos. A grande maioria era pobre, mas havia também algumas pessoas ricas (cf. 1Cor 4,13). Essa mistura gerou vários conflitos internos. Além das dificuldades internas, as comunidades há muito tempo enfrentavam várias situações de sofrimento. O domínio do império romano foi marcado por guerras constantes pelo poder e por numerosos impostos. A situação do povo foi piorando cada vez mais.

 

Muitas pessoas ficaram endividadas, perderam suas terras e acabaram tendo que trabalhar como arrendatárias, meeiras, diaristas ou mesmo sem trabalho (Lc 14,12-14). Vivendo nessa realidade, as comunidades cristãs entraram em crise. Eis alguns acontecimentos que marcaram profundamente a vida dessas comunidades:

 

• Em 64 d.C., Nero começou a perseguir os cristãos em Roma.

 

• Entre os anos 66 e 73 d.C., aconteceu a Guerra Judaica, tendo como consequência  o desaparecimento de vários grupos influentes na vida do povo judeu.

 

• Por volta do ano 70 d.C., o templo e a cidade de Jerusalém foram destruídos. Os únicos grupos que sobreviveram foram o dos fariseus e o dos cristãos, que fugiram para as regiões vizinhas.

 

• Por volta de 85 d.C., começa uma perseguição contra os grupos de judeus hereges;  entre eles está o grupo de cristãos, que é expulso da sinagoga.

 

Após a Guerra Judaica, o grupo de judeus-fariseus procurou reconstruir e reorganizar o povo judeu na sinagoga. Pouco a pouco, esse grupo ganhou força, foi reconhecido pelo poder romano e recebeu o direito de cobrar tributo do povo judeu. Participar da sinagoga era uma espécie de carteira de identidade. As autoridades judaicas retomaram a rigorosa observância da Lei judaica, e quem desobedecia ou discordava era perseguido e eliminado. Foi o que aconteceu com o grupo de judeu-cristãos. Nesse período, as primeiras lideranças das comunidades cristãs, como Pedro, Paulo, Maria Madalena, já haviam morrido. As cristãs e os cristãos estavam vivendo num ambiente de mentalidade grega. Na cidade reinava a lógica  do lucro, do dinheiro e do comércio, inclusive de vidas humanas. O sistema escravista era predominante nas cidades greco-romanas. A competição, a ganância e o acúmulo de riquezas criaram um verdadeiro abismo entre ricos e pobres (Lc 16,19-31). A prática da partilha e  da solidariedade foi deixada de lado. Tornou-se um ideal muito distante. As comunidades cristãs sentiam-se perdidas, inseguras e sem rumo. Havia uma forte crise de identidade. Nesse contexto, era necessário fazer uma releitura da palavra e da prática de Jesus a partir da realidade da comunidade.

 

Era preciso voltar às origens, procurando encontrar luzes para viver o momento presente. A realidade das comunidades exige atualizar a prática de Jesus. A existência de ricos cada vez mais ricos e a presença de miseráveis nas comunidades cristãs mostram que é preciso retomar a prática da partilha e da solidariedade (Lc 6,20-38). Por isso, o evangelho de Lucas e o livro dos Atos dos Apóstolos dão uma atenção especial às pessoas pobres e marginalizadas, insistindo na importância da partilha.

 

Conhecendo a propostado evangelho de Lucas

 

Espírito, conversão dos ricos, imagem de Deus misericordioso e caminho são elementos importantes para conhecermos qual é a proposta do evangelho de Lucas.

 

a) Espírito

A presença do Espírito é constante. Ele atua na vida de João Batista e na de Jesus antes de eles nascerem (Lc 1,15.35). Esse mesmo Espírito se faz presente no momento do batismo (Lc 3,22). É o Espírito quem conduz Jesus ao deserto e em seu ministério na Galileia (Lc Em Lucas, Jesus é apresentado como ungido pelo Espírito para anunciar a Boa-nova aos pobres e oprimidos (Lc 4,17-20). A partir do momento que Jesus inicia a sua missão, pouco se fala do Espírito, pois ele está presente em Jesus e age a partir dele. De acordo com a promessa de Jesus, o Espírito Santo estará presente nos momentos de perseguição e na realização da missão (Lc 12,12; 24,49).

 

Diante do medo e da insegurança das comunidades cristãs, o autor tenta reavivar a fé da comunidade, reforçando que o Espírito de Deus atua em Jesus e em cada pessoa que adere à prática da partilha e da solidariedade com as pessoas pobres e excluídas.

 

b) Conversão dos ricos

No evangelho de Lucas, há uma catequese que convoca os ricos à solidariedade. A  riqueza só é bênção de Deus se for partilhada (Lc 12,13-21; 16,19-31). Zaqueu, chefe dos cobradores de impostos, ao encontrar Jesus realiza a partilha e é reintegrado na sociedade; ele é “filho de Abraão”, ou seja, ele também tem direito de pertencer ao povo de Deus (Lc 19,1-10). Trata-se de uma catequese para os ricos se abrirem ao projeto da partilha e da solidariedade, convite estendido a todas as pessoas cristãs.

 

c) Deus misericordioso

As páginas do evangelho de Lucas nos revelam o rosto misericordioso de Deus, que age em Jesus. Um Deus que nos ama de maneira incondicional e que está sempre aberto para acolher suas filhas e seus filhos (Lc 15,1-32). Em Jesus, Deus oferece o perdão às pessoas pecadoras. A mulher é perdoada porque muito amou; o mesmo acontece com Zaqueu, que se dispõe a mudar de vida (Lc 7,36-50; 19,1-10). Diante do homem necessitado, o samaritano “moveu-se de compaixão” (Lc 10,29-37). O samaritano é como Jesus, que sente a dor do outro a partir das entranhas e se aproxima de seus semelhantes. d) Caminho

 

A obra lucana segue o caminho da periferia para o centro: as atividades de Jesus começam na Galileia e terminam em Jerusalém, e o livro dos Atos começa em Jerusalém e termina em Roma. É no caminho que Jesus ensina as exigências do discipulado, tendo como pontos centrais a oração, a misericórdia e a partilha. E quanto mais se aproxima do centro – Jerusalém ou Roma – lugar da morte, da ressurreição e da missão, é preciso coragem para não recuar. É o caminho da Palavra! É o caminho de cada pessoa que adere à prática de Jesus.

 

Uma leitura atenta do evangelho de Lucas nos traz muitos apelos, e o principal é o da misericórdia. É um convite a nos deixar mover pela compaixão. Assim estaremos no caminho de Jesus.

 

Conhecendo a estrutura do texto

 

O autor do evangelho de Lucas tem grande habilidade para escrever, conhece e emprega muito bem as regras literárias do seu tempo. Ele está preocupado em apresentar, de maneira ordenada e clara, os acontecimentos a respeito de Jesus desde as origens. Por meio de seu escrito, a pessoa que lê é transportada para o contexto e o tempo de Jesus na Judeia e na Galileia.

 

Olhando o conjunto do evangelho de Lucas acerca das atividades de Jesus, podemos perceber que há uma organização geográfica cujo percurso é a Galileia, o caminho, ou a subida para Jerusalém, e a cidade de Jerusalém. A partir desse ponto de vista, após a apresentação do nascimento de João Batista e de Jesus (Lc 1,5-2,52) e a preparação para o ministério de Jesus (Lc 3,1-4,13), o evangelho pode ser dividido em três partes:

 

1ª A atividade de Jesus na Galileia (Lc 4,14–9,50).

 

2ª A viagem para Jerusalém(Lc 9,51–19,28).

 

3ª Em Jerusalém(Lc 19,29–24,53).

 

Na primeira parte, acompanhamos os passos de Jesus na Galileia não como os fariseus e os doutores que murmuram e armam ciladas para Jesus,  mas com a disposição de aprender dele a solidariedade com as pessoas marginalizadas. Impulsionado pelo Espírito, Jesus parte de Nazaré para Cafarnaum (Lc 4,31), anuncia a palavra de Deus à  margem do lago da Galileia (Lc 5,1), percorre cidades e aldeias (Lc 5,12; 8,1), sobe à montanha  para rezar (Lc 6,12), anuncia num lugar plano (Lc 6,17), retorna a Cafarnaum (Lc 7,1) e, em seguida, vai  para Naim (Lc 7,11). Entrando na segunda parte, viajamos com Jesus para Jerusalém. No caminho, Jesus ensina a seus discípulos o amor ao próximo, a importância de ouvir e praticar a palavra, o valor da oração, o cuidado com a administração dos bens, a misericórdia e o cuidado especial com as pessoas pobres e marginalizadas. Em vários momentos, o autor reforça que Jesus segue para Jerusalém (Lc 9,51.53; 13,22; 17,11; 19,11.28.41).

 

Chegando a Jerusalém, entramos na terceira parte, Jesus aparece no Templo e enfrenta as autoridades judaicas: “Minha casa será uma casa de oração. Vós, porém, fizestes dela um covil de ladrões” (Lc 19,46). Jesus permanece na cidade até o fim de sua vida. Aí vive o mistério de sua paixão, morte e ressurreição.

 

Seguir Jesus significa colocar-se ao lado das pessoas marginalizadas e excluídas da história. Mesmo correndo risco de morte, Jesus não recua, mas segue adiante e paga com sua própria vida: ele é crucificado. Mas a morte não tem a última palavra: ele ressuscita, está vivo e caminha conosco. A missão continua amparada pelo Espírito de Deus.

 

 

Um roteiro para ler o evangelho de Lucas

 

Desde as primeiras páginas do evangelho de Lucas, Jesus é proclamado o Salvador enviado por Deus (Lc 1,46b-47). É tempo de renovar a esperança e a fé na presença de Deus que visita o seu povo. Esse evangelho apresenta uma releitura da vida e da prática de Jesus com a intenção de ajudar as comunidades cristãs a retomar o seguimento de Jesus. Acompanhando os passos de Jesus nesse evangelho, descobrimos a presença de um Deus amoroso e compassivo.

 

O evangelho de Lucas é conhecido como o evangelho do caminho.

 

No caminho, Jesus transmite seus principais ensinamentos a seus seguidores e seguidoras. Seguir Jesus exige deixar-se mover pela compaixão e aproximar-se das pessoas marginalizadas  e excluídas. Esse foi o caminho de Jesus, e o da pessoa cristã não pode ser diferente.Entre as muitas possibilidades de leitura desse evangelho, eis o caminho que propomos: o encontro entre Maria e Isabel (Lc 1,39-56) é um convite para acreditarmos na solidariedade fraterna que gera comunhão de vida. Com Maria, queremos celebrar a presença de Deus na história do seu povo e em nossa história. Como Maria, que se coloca a caminho para servir Isabel, que sai da periferia para o centro, a comunidade cristã do século I e nossas comunidades hoje são chamadas a seguir Jesus, fazendo-se solidárias com as pessoas necessitadas.

 

O evangelho de Lucas proclama quatro bem-aventuranças aos pobres e quatro maldições contra os ricos, ou seja, são advertências contra a sociedade individualista e a busca desenfreada de riquezas (Lc 6,20-26).

 

Nesse contexto, as bem-aventuranças anunciam a transformação de uma sociedade injusta e o projeto de inclusão social para as pessoas marginalizadas e excluídas. A prática do amor e da justiça exige de cada pessoa cristã o compromisso com a construção de uma sociedade justa e fraterna.

 

Outro texto que nos ajuda a retomar a prática da misericórdia é a parábola do samaritano (Lc 10,25-37). No tempo de Jesus e das primeiras comunidades, ainda havia um excessivo apego às leis. Um judeu, para ser puro diante de Deus, devia cumprir as exigências da Lei: pagar dízimo, dar esmolas, orar, jejuar, guardar o sábado e não manter contato com as pessoas que eram consideradas impuras, por exemplo: deficientes físicos, doentes, pobres, indigentes e estrangeiros, como o samaritano, por exemplo.

 

“Quem é o meu próximo” é a perspectiva de quem se preocupa com o cumprimento da Lei; a parábola inverte a questão: “quem se tornou próximo daquele  que caiu nas mãos dos  assaltantes?” (Lc 10,36). É uma parábola que provoca uma revisão de nossas atitudes e preconceitos. É um espelho que nos ajuda a refletir se vivemos a compaixão e a solidariedade ou se ainda continuamos apegadas/os às normas e prescrições que, muitas vezes, nos impedem de vivermos a fraternidade.

 

A leitura da parábola do pai misericordioso (Lc 15,11-32), que ama seus filhos de maneira incondicional, contém um forte apelo para vivermos a misericórdia. No tempo de Jesus, a teologia oficial, conhecida como a teologia da retribuição, afirmava que Deus recompensava uma pessoa justa com riqueza, vida longa e descendência, e uma pessoa injusta com pobreza, esterilidade e sofrimentos. Os pobres, os doentes, as pessoas com alguma deficiência física e os estrangeiros eram considerados impuros (Ex 20,5; Sl 38,2-6).

 

De acordo com a Lei oficial, era proibido o contato com pessoas impuras. Indo na contramão da teologia oficial, muitos grupos continuaram afirmando que Deus não abandona os pobres, mas caminha com as pessoas que sofrem, ele “protege o estrangeiro, sustenta o órfão e a viúva” (Sl 146,9). Não é o Deus do sacrifício, mas o Deus da misericórdia. É esse o rosto de Deus que Jesus nos revela na parábola do pai misericordioso. É preciso entrar e participar da festa da vida, “pois esse teu irmão estava morto e voltou a viver”.

 

Será que nós entraremos nessa festa? Para coroar a leitura do evangelho, propomos a narrativa dos discípulos de Emaús (Lc 24,13-35).

 

A decepção e a frustração estão presentes nos sentimentos dos discípulos de Emaús: “Nós esperávamos que fosse Jesus, o nazareno, quem libertaria Israel”. Os discípulos e o povo esperavam um messias-rei que fosse forte e derrotasse o império romano, dando liberdade para o povo judeu e restabelecendo a realeza de Israel. Esse ensinamento fazia parte da catequese oficial dos judeus e era a maneira de pensar de muitas pessoas. Por isso, os seguidores e as seguidoras de Jesus tiveram dificuldade de entender a maneira de agir de Jesus. Nessa realidade de dúvida e descrença, a comunidade de Lucas descreve como fez a experiência de Jesus ressuscitado na comunidade. Que o Espírito de Deus nos dê abertura para vivermos a partilha e a solidariedade e, assim, renovar a certeza de que o Ressuscitado está vivo entre nós.

 

O caminho de Jesus é o caminho da compaixão e da solidariedade. É caminho aberto.